Haikyuu: Mestre da Fórmula Shonen

Dentre os inúmeros gêneros que compõem a animação japonesa, o mais frequentemente noticiado pela mídia convencional – principalmente no ocidente – é, sem dúvidas, o shonen. Apesar de, tecnicamente falando, o termo servir somente para indicar quais mangás são publicados em revistas direcionadas ao público masculino adolescente, a comunidade rotineiramente o utiliza para evocar um conjunto de paradigmas narrativos que o permeiam – tais como estrutura textual, arquétipos de personagem e tendências temáticas. E, por mais que os tropes propriamente ditos variem de acordo com a época e a obra – o que torna revisitar várias séries antigas uma experiência surpreendentemente nova –, é difícil olhar para a similaridade dos títulos do gênero e não sentir que ele está… praticamente estagnado, diferente apenas na exiguidade dos últimos lançamentos.

Embora muito desses paradigmas tenham sido uma inovação gigantesca na época em que foram estreados, após quase trinta anos de readaptação, a repetição da mesma fórmula transforma até as melhores ideias em clichê – e quando os novos sucessos do gênero são extremamente semelhantes aos últimos, e os últimos não estão tão distantes dos primeiros, dar de cara com mais uma obra que adere à esses tropes é uma causa compreensível de depreciação prematura. Mas, a aparente mediocridade de tudo que se rende ao clichê é algo inerente à fórmula, ou há meios de aderir a eles sem perder um nível digno de qualidade? Para responder a essa pergunta, irei discutir como Haikyuu, um dos maiores sucessos da Jump nos últimos tempos, busca um patamar de excelência calcado não na originalidade, mas na competência de sua execução – até porque, todo trope precisa se provar funcional para sobreviver.

O desejo inabalável pela vitória, ou “a vitória como motor da narrativa”.

Não é novidade para ninguém que “vitórias” são uma parte essencial do que faz uma narrativa convencional funcionar – afinal, até o mais torturante grimdark precisa de conquistas pontuais que avancem a trama, e mesmo um lentíssimo slice of life garante que haverá pequenas vitórias ao longo de cada episódio. Independente de gênero ou estilo, elas são responsáveis por recompensar o tempo que a audiência investe num conflito, e determinam qual será o curso do roteiro dali em diante. Dentro de um shonen, o papel que elas expressam dentro da narrativa costuma ser ainda maior – mais do que a consequência de um conflito, a vitória se torna a forma com que a obra torna ideais temáticos legítimos, bem como a rota com a qual resolve drama. Diferente de, por exemplo, Baccano – onde a vitória de um personagem em combate significa muito pouco –, vencer uma luta num shonen é o clímax que coloca ideias à prova e conclui um arco dramático. Para fins explicativos, um excelente exemplo seria a luta entre Naruto e Neji, que abrange os capítulos 99 e 104 do mangá homônimo ao protagonista.

A fim de não deixar o novo arco vazio de núcleo emocional, o mangá decidiu introduzir o segundo personagem com convicções e personalidade completamente opostas à do primeiro: Naruto nasceu e cresceu como um fracassado, que conseguiu deixar sua miséria baseado somente no trabalho duro – num nível temático, representa a capacidade de um indivíduo de sedimentar o próprio sucesso com esforço e trabalho duro. Por sua vez, Neji nasceu e cresceu como um gênio, mas cujo objetivo estava inevitavelmente fora de seu alcance devido ao sangue com que nasceu – não importava o empenho, estaria para sempre preso ao estigma em sua testa. E, por conta disso, seu ódio por Naruto surgiu – as atitudes do dito protagonista eram a prova viva de que a gaiola que chamava de “destino” era apenas uma ilusão, de que havia sofrido por tantos anos em vão. Dessa forma, o resultado da batalha entre ambos durante a terceira fase do Exame Chunnin não era apenas uma questão de qual dos dois seria capaz de graduar, mais sim a forma com que o roteiro colocou os ideais de ambos à prova – e a vitória foi quem determinou qual estava correto.

A princípio, o paradigma não muda de forma significativa para Haikyuu – semelhante a outros do mesmo gênero, a vitória continua a servir como canal tanto para a resolução de conflitos temáticos quanto para o avanço do enredo. A partida contra a Shiratorizawa, por exemplo, não é somente uma questão de qual dos dois times irá para o campeonato nacional, mas também um embate entre a mentalidade do técnico Washijo – para quem o topo é reservado aos naturalmente aptos – e da própria Karasuno – um time que almeja alcançar o topo com trabalho duro. O simples fato de que o Hinata é capaz de competir, apesar de seu tamanho, é uma afronta à filosofia que tem servido como crisol para os jogadores da Shiratorizawa por anos – e após o confronto, o vitorioso se prova legítimo.

Ao invés disso, o maior desafio que o mangá enfrente nesse quesito é fazer com que os jogos sequer importem para a audiência – afinal de contas, diferente de outras obras, nas quais o destino do mundo ou a carreira profissional de determinado personagem frequentemente estão na linha, tudo o que está em risco nas partidas é a espera para tentar competir mais uma vez no ano seguinte. Para sanar isso, mais do que tentar inventar uma razão artificial – “vamos nos casar quando você for dubladora do anime que adaptar o meu mangá!” –, a obra tenta fazer um apelo mais pessoal. Assim como muitos de nós, eles têm algo que amam tanto fazer que simplesmente não querem largar mão disso – um jogo perdido está longe de ser o fim do mundo, mas para os personagens, representa a ideia desesperadora de que eles não terão a oportunidade de enfrentar oponentes cada vez mais fortes, de que eles estão um passo mais distante de serem os melhores naquilo que gostam. E o modo como a vitória se torna um vício que deixa os personagens sedentos pela perspectiva de estar na quadra mais uma vez é parte da maneira única com que o mangá torna o drama genuíno e identificável – no final do dia, mais do que um dilema filosófico, o que atormenta os personagens é como farão para serem ainda melhores no jogo pelo qual estão apaixonados.

A paixão inesgotável por amizade e companheirismo, ou “o papel dentro do time como forma de exaltar o indivíduo”.

A partir do momento em que os personagens principais são introduzidos, é seguro assumir que a obra vai tratar eles como um grupo. No entanto, poucas se dedicam a desenvolver a dinâmica de time de um modo tão intenso quanto um shonen – por mais que Cowboy Bebop dê grande destaque à dinâmica entre o grupo de protagonistas, não há nenhuma cena em que algum deles grite para o vilão que não irá tolerar que seus companheiros sejam feridos. Em contraste, logo que os conflitos e objetivos centrais são estabelecidos, já se espera justamente esse tipo de relacionamento entre o personagem principal e seus recém-introduzidos companheiros – e muitas das vezes não demora mais que um volume para que estejam lutando em prol de seus laços inabaláveis de amizade. Apesar de ser bastante lógico de um ponto de vista cultural – uma vez que, dentro da sociedade japonesa, ensinar aos jovens valores de coletivismo e abnegação é essencial –, esse trope frequentemente falha em fazer com que a audiência se conecte ao elenco, bem como em construir um relacionamento íntegro, coeso e coerente entre os membros da equipe. E, ainda que o número de obras que ilustrem perfeitamente o que quero dizer excedam a minha capacidade de contar, um exemplo suficientemente bom será Nanatsu no Taizai.

Em momento algum a história busca dar qualquer motivo para que o elenco principal seja um grupo – ou, em termos mais precisos, não é preciso que eles trabalhem como uma equipe para resolver a esmagadora maioria dos conflitos do roteiro, e a amizade deles raramente interfere no drama individual de cada personagem. Mesmo os poucos membros que sequer possuem uma necessidade dramática quase sempre a satisfazem sozinha – a existência dos Sete Pecados Capitais (como um grupo) não contribui para a ressurreição da Elaine ou para a quebra da maldição de Elizabeth, o objetivo central de dois dos personagens mais importantes do elenco. Até num nível superficial, o roteiro demora 182 capítulos para tentar explicar a razão do time ter sido reunido – e ainda sim, a diferença gritante de poder entre eles torna muitos dos personagens menos centrais completamente irrelevantes para a execução do dado objetivo, o que torna o primeiro ponto ainda mais válido: não há porque Meliodas ou Ban se aliarem a pessoas fracas demais para os acompanhar.

Para agravar o problema, o relacionamento e a caracterização dos personagens são tão mal construídos que, caso um dos integrantes fosse substituído por alguém do elenco secundário, as consequências seriam minúsculas – basta que eles sejam capazes de fazer o que o roteiro pede na hora necessária. Não é preciso, por exemplo, que seja a Merlin quem derrote ambos os mestres de Meliodas, visto que a personagem não possui nenhum vínculo dramático com eles – caso Gilthunder ou Jericho fossem poderosos o suficiente, poderiam muito bem ter feito o mesmo. E o mesmo vale para praticamente qualquer outro conflito que o grupo enfrenta – os personagens têm tão pouca ambição ou personalidade que o drama de cada um raramente vai de encontro com o de outro, o que torna a maior parte da interação entre eles vazia. Com exceção do momento no qual Ban é ordenado a matar Meliodas para que Elaine pudesse ser revivida, em nenhum momento determinado personagem ser parte dos Sete Pecados Capitais significa algo – tanto para o desenvolvimento dos integrantes quanto da trama.

Em contraste, um dos principais alicerces da construção de personagem de Haikyuu é a forma com que o sucesso de determinado membro do grupo está diretamente conectado a quão bem eles conseguem trabalhar como uma equipe – por mais que o próprio mangá frise a importância de evoluir como indivíduo, somente com a ajuda de mais alguém tão dedicado e habilidoso quanto é possível permanecer na quadra. Por conta disso, não só existe um motivo lógico para que trabalhem juntos – afinal, nenhum deles consegue receber, levantar e atacar sozinho –, como também um grau de coesão que distribui o drama de diferentes personagens nos ombros do time todo. Pode ser que somente os terceiranistas estão na sua última oportunidade de participar do campeonato nacional, mas a pressão de ser bom o suficiente para chegar até lá não recai apenas neles – sem que os calouros se esforcem tanto quanto, o trabalho duro deles será desperdiçado.

Como resultado, o desenvolvimento dos personagens ao longo dos arcos se torna extremamente eficiente e gratificante – é poderoso por si só ver Tsukishima finalmente embrulhar o estômago com a paixão pelo esporte depois vários arcos se questionando qual o valor na dedicação pelo vôlei, mas o que o sucesso individual dele representa para todos os companheiros do time torna o momento ainda mais recompensador. E o domínio desse método de escrever personagens é uma característica que fortalece vários dos momentos do mangá, tanto dentro quanto fora do grupo principal – como, por exemplo, as dificuldades pelas quais Lev enfrenta para se integrar ao “sistema” da Nekoma, ou a forma com que os jogadores da Shiratorizawa são selecionados de forma que se inspirem no ás, mas sem competir com a presença dele.

Autodescoberta através de esforço e trabalho duro, ou “esforço como desejo ardente de alimentar uma paixão”.

Diferente dos dois elementos previamente discutidos, há muito mais flexibilidade quanto ao esforço necessário para que os personagens alcancem seus objetivos – e, muitas das vezes, pode até mesmo se provar um recurso desnecessário. Dentro de determinados contextos, é essencial que o autor dê aos personagens somente as conquistas que eles trabalharam duro para atingir – por exemplo, Hibike Euphonium! perderia completamente o significado caso Kumiko fosse uma mestre do eufônio desde o princípio, visto que a história aborda justamente o desejo de se empenhar para ser especial. Mas em outras, impedir os personagens de realizarem certas tarefas por falta de dedicação seria só inconveniente – fazer com que o elenco de Sarazanmai precisasse treinar para aprender a dança de transferência anal, por exemplo, apenas machucaria o ritmo da história.

No caso de shonen, exigir empenho dos personagens é tão frequente que levou ao surgimento de vários capítulos dedicados exclusivamente a mostrar o treinamento pelo qual precisaram passar a fim de superar o mais recente adversário – os infames arcos de treinamento. Além de ser uma forma simples de ensinar valores éticos aos jovens japoneses – o herói nunca pode recorrer aos “métodos dúbios” dos vilões para melhorarem –, há benefícios narrativos claros as obras que recorrem a esse recurso: a gratificação adquirida quando os personagens finalmente alcançam seus objetivos é muito maior. Visto que a audiência testemunhou o esforço envolvido e, assim como os personagens, investiu tempo para vê-los serem bem-sucedidos, o peso dramático colocado sob a luta é maior – o que, por sua vez, torna a vitória mais satisfatória. É diferente a resposta emocional que uma obra provoca no leitor quando Mugen derrota alguns espadachins genéricos em Samurai Champloo, comparado com a apresentação final de Yukihira durante as Eleições de Outono em Shokugeki no Souma – justamente por quanto o desafio e o trabalho duro adicionam à segunda situação.

Um dos principais exemplos do uso desse trope dentro do gênero é Bleach, cuja estrutura é pensada de forma que, muito próximo do clímax, o personagem tenha a oportunidade ou necessidade de treinar para enfrentar o próximo inimigo absurdamente poderoso – o que, apesar de gerar um gargalo no ritmo da história, é um recurso que gera antecipação por uma luta memorável e novos poderes logo antes da batalha final. Dessa forma, o mangá é capaz de manter o interesse da audiência e tornar as novas habilidades ridículas ligeiramente mais críveis – um exemplo claro disso é a diferença que existe entre a vitória de Ishida e a de Ichigo durante suas respectivas lutas no arco de Invasão da Soul Society. O advento de uma habilidade nova capaz de simplesmente obliterar um capitão é muito menos satisfatório do que ver Ichigo conseguir dominar a Bankai poucos momentos antes do evento de execução da Rukia – porque, ao ver as dificuldades que ele passou para isso, a vitória parece mais merecida.

Chega a ser redundante dizer que Haikyuu cai na aba de obras que demandam sangue, suor e lágrimas para que os personagens alcancem até mesmo a menor das vitórias – como o treino incansável que Yamaguchi precisou para dominar o saque flutuante, ou pelo qual Tsukishima passou para aperfeiçoar o bloqueio de leitura – e não há exemplo que melhor demonstra isso do que o próprio protagonista, Hinata. Apesar da aptidão atlética e intensa paixão pelo esporte, ele simplesmente não merece um lugar dentro da quadra: é desajeitado, péssimo com recepções, pior ainda no saque, e a performance dele como bloqueador é medíocre no melhor dos casos – até mesmo seu ataque em tempo negativo depende completamente de Kageyama para acontecer. E a série faz questão de deixar isso claro ao longo dos primeiros oito volumes ao introduzir, de pouco a pouco, novas formas de impedir o poderoso ataque rápido surgem – o commit block da Nekoma, o bloqueio de leitura da Date Tech –, até o ponto em que a Aoba Johsai prova ao time que ele é insuficiente.

Por conta disso, nos volumes seguintes, Hinata percebe que precisa urgentemente evoluir como jogador – para merecer continuar na quadra, é indispensável que ele seja bom em tudo, e a jornada árdua pelo qual ele passa para tal é o que faz os sucessos seguintes dele tão impactantes. Perceber que o Hinata dos primeiros volumes jamais teria habilidade e instinto suficientes para bloquear o Ushijima, e com isso testemunhar o quanto ele cresceu desde então, provoca uma resposta emocional maravilhosa na audiência.

Protagonistas rivais com personalidades contrastantes, ou “dinâmica de personagem através de um objetivo comum em convicções opostas”.

Ainda que os pormenores da rivalidade entre dois dos personagens do elenco principal variem bastante de obra pra obra – o relacionamento de Naruto e Sasuke é completamente diferente do de Kenshin e Sonosuke, e ainda menos semelhante ao que o autor finge que existe entre Natsu e Gray –, é seguro dizer que para cada protagonista energético e teimoso de cabelo pontiagudo, haverá um companheiro frio, talentoso e de cabelo escuro para servir de realce. E, assim como muito dos tropes discutidos anteriormente, não é algo exclusivo de shonen – um contraste para o protagonista pode ser útil para muitos roteiros, uma vez que permite ao autor criar uma disparidade temática e conflitos de forma prática e intuitiva –, como pode ser visto em obras como Yuri on Ice e Berserk.

Isso dito, o fato de os maiores exemplos do trope frequentemente serem shonen o tornaram praticamente sinônimo ao gênero – e dentre eles, o nosso caso de estudo será a rivalidade de Midoriya e Bakugo, de Boku no Hero Academia. Como é de se esperar, cada um é encarregado de incorporar ideias opostas do núcleo temático: o protagonista, Midoriya, representa o heroísmo que precede a capacidade exercê-lo – ou seja, alguém tão altruísta que, mesmo sem poderes, não consegue ficar parado quando vê uma pessoa que precisa de ajuda. Do outro lado do espectro, Bakugo representa o heroísmo que se torna legítimo em virtude da capacidade de exercê-lo – ou seja, alguém convicto na coerção do poder como caminho para justiça. E, à medida que o enredo avança e questiona do que é realmente feito um herói, esse contraste dialoga com o tema, tanto para refletir as próprias ideias quanto para fazer com que ambos cresçam como personagem. A partir daí, conflito e drama surgem naturalmente.

No caso de Haikyuu, muitas das características mais marcantes do trope são preservadas: como em outras obras do gênero, a rivalidade entre os protagonistas serve tanto para um realce mútuo – Kageyama é um gênio restringido pelo próprio orgulho, enquanto Hinata é um underdog ambicioso limitado pela pequena estatura – quanto como alicerce para conflitos dentro do elenco recorrente. A diferença está no modo com que o mangá trabalha a dinâmica que existe entre os dois – ao invés de fazer com que ajam individualmente e simplesmente destacar o contraste depois, a narrativa torna Hinata inteiramente dependente de Kageyama para sequer entrar na quadra. Mas, visto que já exploramos como isso afeta o Hinata como personagem, creio que dessa vez será melhor ver como o mesmo se aplica ao Kageyama.

Como dito previamente, Kageyama é alguém cujo talento para o vôlei – seja no saque, no levantamento ou no ataque – é superado somente pelo senso de orgulho e paixão que tem pelo esporte. Ele sabe que seus passes sempre serão do mais alto calibre, e quer que seus ponteiros os acertem com cortadas tão boas quanto. Mas, diferente de outros rivais genéricos de shonen, que quando chegam num ponto onde “desejam adquirir ainda mais poder” podem simplesmente abandonar a vila para correr atrás do vilão ou algo do tipo, Kageyama não tem essa opção. Mesmo que ele tenha a habilidade necessária para se destacar em todas as posições, ele não consegue competir sozinho. Como o próprio Oikawa deixa claro para ele ao longo da primeira temporada, vôlei é um esporte coletivo – vence não o melhor indivíduo, mas o time com os seis melhores jogadores.

E ele passa a compreender isso da pior maneira possível: como retaliação pela atitude arrogante e soberana com que agia na quadra, os companheiros de time de Kageyama passam a ignorar todos os levantamentos incríveis que ele faz – e com isso, o submetem à frustração e insegurança, fora privá-lo de fazer o que mais ama. Nesse contexto, surge o papel de Hinata dentro da rivalidade entre os dois – ele é alguém cuja paixão não permite que ele deixe um levantamento passar sem cortá-lo. Diferente do time com quem Kageyama jogou durante o fundamental, Hinata está mais do que disposto a cobrar ainda mais do talento de seu levantador, e ainda mais feliz em tentar fazer jus às expectativas dele – com ele, Kageyama é capaz de crescer como personagem, evoluir como jogador, e mais importante ainda, se divertir jogando vôlei.

Batalhas acirradas que culminam em momentos épicos, ou “o ápice que une todos os outros elementos”.

Com tudo isso dito, é difícil dizer que qualquer um dos elementos mencionados ao longo deste texto são o que realmente define um shonen – o que realmente fazia com que nossos eus de 13 anos de idade devorassem incansavelmente o conteúdo do gênero é a capacidade que ele tem de gerar hype. Isso era o que nos levava a assistir centenas de episódios, um atrás do outro: a ansiedade pelo próximo momento épico que faria nosso corpo se arrepiar cada vez que lembrássemos dele. Não importa de fato qual deles seja – para você, talvez seja a marcha de Luffy e sua tripulação ao Arlong Park. Ou quando o Naruto usou o Rasengan pela primeira vez. Quem sabe até mesmo o momento em que Tanjirou redescobriu o poder do pai para decapitar Rui –, mas é inegável que esses são os momentos que realmente definem o gênero. E para mostrar o quão delicado o processo de aplicar os tropes citados para provocar esse tipo de estímulo emocional na audiência pode ser, tomemos One Piece como exemplo.

A luta entre Sanji e Luffy, que ocorre durante os capítulos 834 e 844 do mangá, serve como um ótimo estudo de caso não só por esquecer vários dos elementos necessários para provocar catarse, mas também por estar em uma obra que outrora já fez muito bom uso deles – e, por mais que eu não vá fazer qualquer comparação direta por aqui, muitos dos leitores da obra conseguirão fazê-la por conta própria. Nessa cena, Sanji – que foi forçado a abandonar a tripulação quando teve seu pai adotivo feito refém por sua família de sangue –, se encontra pela primeira vez com Luffy, que desde o início do arco tem passado por inúmeras situações difíceis para resgatar o amigo. Contudo, a fim de impedir que seus queridos companheiros também se tornem reféns, Sanji se sente na responsabilidade de impedi-lo e carregar sozinho o fardo da situação. Num vácuo, é uma excelente premissa que foi pobremente executada:

  • A luta é tão vazia de significado e representa tão pouco para o andamento do roteiro que poderia ser removido do arco sem nenhum problema. Caso ambos não tivessem se encontrado naquele momento, o restante do enredo teria sido desenvolvido do exato mesmo jeito, e nenhum dos personagens passou por algum conflito que tivesse impacto dramático ou temático por conta dela.
  • O apelo que ela faz à amizade dos personagens é tão artificial e forçado que contradiz características muito bem estabelecidas tanto da personalidade quanto do relacionamento deles. Ao invés de te fazer se sentir triste pelo bando, ele te faz questionar o quão pouco os Chapéus de Palha conhecem o Sanji para acreditar numa mentira tão óbvia quanto “vocês são pobres, e a minha família é rica”. Da mesma forma, é difícil acreditar que Luffy desistiria tão rápido de correr atrás de um companheiro, principalmente quando existem exemplos em outros arcos do mangá do quão longe ele está disposto a ir – como, por exemplo, Enies Lobby.
  • A cena toca no relacionamento dos personagens num nível tão superficial que, caso você trocasse o Sanji por qualquer outro membro do bando, até mesmo com o exato mesmo conflito (ter sido raptado pela família), não haveria nenhuma mudança no transcorrer da luta.

Para um exemplo excelente da competência com que Haikyuu constrói esses momentos, basta olhar para o desfecho do último jogo das Preliminares do Intercolegial, que ocorre entre os capítulos 49 e 69 do mangá. Nele, ambos Karasuno e Aoba Johsai competem desesperadamente para tentar marcar o último ponto da partida, e para garanti-lo, Kageyama recorre à mais confiável e poderosa ferramenta de seu arsenal – o ataque rápido de tempo negativo que, até ali, foi consistentemente capaz de salvar o time de muitas situações difíceis. Contudo, a vitória logo escorre para fora de seus dedos, pois o ataque é prontamente bloqueado. E a fim de tornar o momento tão impactante quanto ele consegue ser, vários dos elementos previamente discutidos são cuidadosamente aplicados:

  • O resultado da partida tem um peso enorme para os personagens que a protagonizam. Para Kageyama, representa o ponto em que somente o seu talento será insuficiente para leva-lo adiante – ou seja, dali pra frente, será preciso aprender com Oikawa e se tornar capaz de jogar em prol do time. Para Oikawa, representa o último ponto no qual seu empenho será capaz de mantê-lo competitivo – agora, além da muralha que a Shiratorizawa ergue diante dele, a Karasuno irá espreitar as sombras logo atrás. Dessa forma, o autor consegue desenvolver tanto os personagens quanto o tema da obra numa mesma cena.
  • A cena muda a forma com que os personagens pensam nos seus objetivos, bem como o modo com que interagem com o mundo. Ao invés de um time decadente quase sem forças para se manter de pé, a Karasuno agora se provou um competidor digno de respeito, com um caminho claro a seguir. É nesse momento, também, que começa a corrida contra o tempo para que os queridos terceiranistas consigam participar do campeonato nacional antes de deixarem a equipe – os quais, por sua vez, acabam de decidir largar um caminho mais seguro até a faculdade em nome da fé que têm no sucesso do time.
  • Por fim, ela também pesa no relacionamento entre Kageyama e Hinata ao, como previamente discutido, deixar claro para o segundo o quanto ele depende do primeiro, e com isso, iniciar uma nova fase de seu arco de personagem.

Conclusão

Ao colocar tudo que foi apresentado ao longo do texto em perspectiva e pensar de volta à pergunta feita logo no começo – “a mediocridade tudo que se rende ao clichê é inerente à fórmula?” –, eu acho difícil responder qualquer coisa além de “não”. Em um mundo globalizado como o nosso, onde quase qualquer um tem acesso aos recursos necessários para escrever e publicar um manuscrito, a abundância de novas obras torna a qualidade de certa estória muito mais uma questão de execução do que de originalidade. Agarrar-se à noção de que aderir a um, dois, ou até cem clichês torna ela imediatamente digna de críticas é aceitar a ideia de que a qualidade de uma narrativa não é uma questão de capricho e técnica, mas de quanto o autor consegue surpreender a audiência – o que, com a arte cada vez mais democratizada, significaria que eventualmente qualquer nova criação estaria destinada ao fracasso logo que é concebida. Mesmo hoje, seria extremamente difícil encontrar uma única obra que não está incluída em dezenas (ou centenas) de entradas no TV Tropes.

Haikyuu é, para mim, um exemplo do quão distante uma linha de raciocínio que calca a qualidade com base na originalidade está da realidade. O mangá se destaca justamente pela competência com a qual consegue usar alguns dos mais antigos, conhecidos e incansavelmente repetidos tropes de toda a mídia para desenvolver uma história de boa qualidade, sem necessariamente precisar recorrer a alguma nova ideia ou método esquizofrênico de estruturação narrativa. Obviamente, não digo isso com o intuito de desvalorizar obras que buscam experimentar novos modos ainda inexplorados de contar uma história, mas sim, para dizer que está longe de ser a única forma de se manter relevante no mundo artístico contemporâneo – até mesmo porque pouquíssimas obras-primas surgem na primeira vez que se tenta algo diferente, e não importa quantas permutações diferentes de uma ideia exista, sempre há caminhos para evoluir ou explorar o conceito além do que já foi feito.

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