A Magia de Tongari Boushi no Atelier

Poucas coisas caem tão bem no termo “tesouro escondido” quanto o mangá Tongari Boushi no Atelier – que, apesar da premissa simples e pouco original, imediatamente se destaca pela arte detalhista e ornamentada que lembra proximamente os traços finos e delicados da estética rococó que o inspira. Contudo, longe de ser somente um “rostinho bonito”, a obra também chama a atenção pela competência com que executa sua trama – não só há um entendimento sólido dos mecanismos necessários para uma boa narrativa, como a conexão emocional entre os eventos do enredo e os personagens, ou um senso claro de propósito para cada capítulo, mas também um jeito único de esconder uma escuridão enervante por baixo das camadas de charme pitoresco que permeiam os belíssimos quadros. Isso dito, dentre os inúmeros aspectos da obra dignos de elogios, aquele que mais me chamou a atenção numa primeira leitura foi o sistema de magia.

Entretanto, a fim de melhor entender o que faz dele tão brilhante, é importante antes delinear um conceito recentemente introduzido por Brandon Sanderson à narrativa fantasiosa: a ideia de que a capacidade de um autor de satisfatoriamente resolver conflitos com magia está diretamente conectada a quão bem o leitor é capaz de entende-la. Com essa lei, os milhares de sistemas mágicos presentes na ficção são repartidos entre duas categorias – os brandos e os rígidos, de acordo com o grau de consistências e clareza com que são apresentados. Dentro da primeira aba, caem obras cuja magia é vaga e imprevisível, com poucas regras e restrições – é mais comum em estórias que buscam dar a ela um tom mais fantástico e etéreo, semelhante à forma clássica que é retratada em contos de fadas e lendas trovadorescas. A segunda aba, por sua vez, engloba os enredos que se preocupam em desenvolver um uso de magia com mecânicas e limitações consistentes, de tal forma que a empregar dentro das condições estipuladas sempre leve ao resultado previsto. Apesar de inerentemente mais trabalhoso, é uma ferramenta fantástica que pode adicionar uma nova camada à forma com que o autor aborda a construção do mundo e o desenrolar dos conflitos.

Como você já deve imaginar, contrário ao que a ambientação estreitamente próxima às fantasias medievais tradicionais te levaria a acreditar, o sistema mágico de Tongari Boushi no Atelier se encaixa confortavelmente no canto mais rígido do espectro. Neste mundo, o uso da magia ocorre ao traçar, com tinta encantada, um círculo constituído de três partes: primeiro, em seu centro, há um dos quatro tipos de “runas” – a princípio, água, terra, fogo ou ar –, responsável por determinar qual será a natureza do feitiço. Em seguida, é desenhado uma “chave” ao redor da runa, responsável por modificar o efeito original – ou seja, a forma, direção e sentido que o efeito mágico irá tomar uma vez que for ativado. Por fim, para que o encantamento de fato aconteça, é preciso contornar ambos runa e chave com um círculo, chamado de glifo. Portanto, em uma aplicação básica, poderia se desenhar a runa para “fogo” – de autoexplicativo –, cerca-la com a chave para “flutuar” – para fazê-lo levitar, estático – e, no momento que o glifo fosse fechado, uma chama começaria a queimar paralela ao rascunho. Quanto maior a runa, maior a labareda, e quanto mais longa ou mais curta a chave, mais distante ou próxima da superfície ela estará.

O grau de modularidade dessa estrutura, na qual cada partícula integrante tem uma função clara que interage com a anterior e a próxima de forma pré-determinada, torna o sistema mágico de Tongari Boushi no Atelier comparável com um idioma. Assim como na gramática, em que se emprega adjetivos, advérbios e outros complementos para alterar o significado ou função de determinada palavra dentro da sentença, é possível dissecar minuciosamente como cada elemento afeta o sistema com um grau de detalhismo e previsibilidade raro até mesmo entre obras consideradas referências dentro do espectro “rígido” da magia. Comparemos, por exemplo, com Fullmetal Alchemist. Ainda que a lei de conservação de massa seja uma restrição muito clara, é impossível para a audiência determinar com precisão se cada barricada que Edward ergue em combate realmente converteu a exata quantidade de prótons necessários, e por mais que a autora se esforce para que os símbolos alquímicos aludam aos da química rudimentar, as exatas propriedades deles nunca são explicadas.

Para constatar como a autora tira proveito disso, basta ver algumas das situações-problema que puderam ser resolvidas com o uso do sistema – entre os volumes dois e três, por exemplo, os personagens precisam resgatar alguns cidadãos presos numa carruagem que deslizou para dentro de um rio com forte correnteza. Depois de ser salvo, uma das vítimas decide ignorar o perigo e tentar recuperar os pertences que ficaram presos à margem, somente para provocar outro deslize, que dessa vez o prende por baixo de várias rochas, e leva junto Coco – a protagonista. Com conhecimento limitado e pouca tinta encantada em mãos, ela se depara com o seguinte obstáculo: retirar a pessoa esmagada de baixo da rocha e voltar com ela para o alto da margem antes que a correnteza as puxe. Apesar de simples, a solução ilustra perfeitamente o modo quase enigmático com que o problema é abordado – mas, ao invés de perguntar “como alguém poderia ter saído dessa sala usando uma pá, uma corda e uma lâmpada”, a questão é “como você pode combinar esses três mecanismos para sair de uma enrascada”. Coco desenha, no ponto em que a rocha esmaga vítima, uma runa do tipo “terra” com a chave para “quebra”, o que esfarela uma parte do escombro. Depois disso, bastou usar uma runa do tipo “ar” com a chave para ‘levitar” e joga-las de volta para a margem.

Outro aspecto do sistema mágico do mangá que merece destaque é a forma com que a autora o utiliza para enriquecer o mundo. Por mais que não seja algo essencial à narrativa em si, pensar em como determinadas tecnologias ou setores da sociedade seriam impactados pela presença de uma força sobrenatural é uma marca de capricho que engrandece a imersão – o leitor pode não pensar duas vezes, mas quando o escritor percebe como um poder elétrico poderia ser utilizado para mover usinas, é um detalhe gratificante. No caso de Tongari Boushi no Atelier, a tecnologia é calcada no princípio de que, para a mágica acontecer, é preciso que o glifo esteja completamente fechado – dessa forma surgem, por exemplo, pares de sapatos e anéis lapidados com metade da runa cada um, e quando eles são colocados lado a lado, permitem que o usuário os use para voar ou irradiar calor, respectivamente. Entre os inúmeros outros objetos que seguem esse mesmo padrão, o que mais me cativou foram as calçadas que se iluminam quando pisam nelas: o pavimento é divido em duas camadas – uma peça macho, com uma elevação circular onde fica desenhada a runa e a chave, e uma peça fêmea, que se encaixa por cima dela e serve como glifo. Quando alguém pisa, o peso empurra a camada de cima para baixo, o que encaixa os dois mecanismos e ilumina o piso.

Ainda que não seja uma característica tão única da obra quanto as outras supracitadas, vale a pena citar o quão bem a narrativa comunica o tema central da história através do uso da magia. De novo e de novo, o mangá faz questão de frisar como a magia é uma ferramenta cuja natureza depende completamente do quão nefastos são os objetivos de quem a usa. Num momento, ela é a presentada como um catalizador de sofrimento, como quando apresenta Romonneau – uma cidade de grande opulência que passou a julgar quem era digno de viver nela de acordo com o quanto contribuíam para a riqueza dela. Aqueles considerados de pouco valor eram transformados em estátuas de ouro vivas, condenadas a assistir o passar das eras, imóveis. Com o tempo, os habitantes começaram a duvidar do valor uns dos outros, e à medida que eram amaldiçoados, a cidade colapsou sob o peso do próprio ouro que a adornava. No outro, mostra quantas coisas maravilhosas ela consegue fazer – como nos inúmeros momentos em que algum bruxo se dedica a ajudar um cidadão comum. É um conceito que o roteiro aborda constantemente, e por mais que não seja fruto da estrutura rígida do sistema mágico, é um reflexo da mesma competência que a criou.

Com tudo isso dito, por mais que Tongari Boushi no Atelier tem sido muito bem-sucedido em explorar os intricados mecanismos de seu sistema mágico de um modo verossímil e criativo, o próprio mangá nos provoca com a ideia de que, até o momento, somente arranhou a superfície do que ele consegue fazer – como os próprios vilões deixam claro, há inúmeros encantamentos, criaturas e tecnologias no horizonte. E mesmo que a obra tenha se provado mais do que apta para satisfazer tanto a minha paixão pelo o que um sistema mágico rígido pode alcançar quanto o meu desejo por uma narrativa com qualidade genuína, o que realmente me entusiasma é a perspectiva do que ainda está por vir – afinal, o mangá parece estar ansioso para mostrar o quão longe ainda consegue ir.

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